Cristiano Marlon Viteck
Colheita da hortelã em Mercedes, no início da década de 70.
Ouro verde
Capítulo quase apagado da nossa história, cultura da hortelã teve papel fundamental na economia da região na década de 1970.
“Quando alguém falasse em hortelã, nós devia tirar o chapéu da cabeça e por a mão pro céu porque foi da hortelã que nós conseguimo tudo o que nós temo aqui”. Nesses tempos em que as plantações de soja e milho predominam no extremo Oeste do Paraná, a afirmação feita por José Honorato Alves, mais conhecido como Seu Zequinha, pode soar estranha para os mais jovens e, por outro lado, deve despertar uma série de lembranças naqueles que já viviam na região durante os anos de 1970.
Episódio quase esquecido da história regional, o cultivo da hortelã foi uma das atividades econômicas mais rentáveis já praticadas em Marechal Cândido Rondon e municípios vizinhos. Uma época de trabalho árduo, mas para muitos, também bastante feliz, tanto que as lembranças emocionam profundamente Zequinha (hoje com 77 anos e morador da Linha Gruta, interior de Mercedes), ao lembrar daquele período em que, ao lado da esposa – já falecida – e dos filhos, encontrou na cultura da hortelã condições de criar sua família e de adquirir a propriedade de 11,5 hectares onde reside há muitos anos.
Morando em Mercedes (na época distrito rondonense) desde 1969, vindo de Palhoça, Santa Catarina, Seu Zequinha é apenas uma entre as incontáveis pessoas que dedicaram parte de sua vida ao cultivo da hortelã.
Uma atividade que teve um ciclo rápido, de pouco menos de 10 anos, mas que provocou um grande processo migratório à região. Gente que veio do sul do país, mas também de outros estados como São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e Bahia, entre outros, em busca de uma vida melhor ou apenas oportunidades de trabalho e que, tão logo encerrou-se o período hortelaneiro, promoveu uma nova diáspora pelo Brasil afora.
Pesquisa
Relatos como o de Seu Zequinha e a curiosidade de conhecer mais sobre aquela época inspiraram o historiador de Mercedes, Gilson Backes, a dedicar-se a uma aprofundada pesquisa que resultou na dissertação “As plantações de hortelã e as dinâmicas socioculturais da fronteira: memórias, trajetórias e estranhamentos em Mercedes”, que desenvolveu no Mestrado em História da Unioeste, defendida no final de maio e bastante elogiada. A partir de uma série de entrevistas e de uma apuração junto às mais diversas fontes, Gilson conseguiu resgatar a ciclo da hortelã na região, com o mérito de colocar em evidência o elemento humano.
Ele explica que a pesquisa surgiu das conversas que tinha com os familiares, que contavam sobre o grande número de pessoas que viviam em Mercedes na época da hortelã. “Me instigou pensar como um número tão grande de famílias vivia em áreas pequenas de terra e ao mesmo tempo saber quem eram essas pessoas, que hoje o pessoal chama de nortistas. Outro fato que no princípio me chamou atenção foi o grande número de escolas que existiam no município. Na década de 1970 havia só em Mercedes 19 escolas rurais, escolas com 80, 100 alunos, 120 alunos. No Arroio Guaçu a escola chegou a ter, em 1974, mais de 200 alunos. E eu começava a pensar, ‘onde estão essas pessoas, como viviam?’”.
No levantamento de fontes, ele percebeu “que poucas pesquisas falavam da cultura da hortelã, ou quando era apresenta, ela era dada como uma atividade passageira. Ou, no máximo, se aponta o grande número populacional da época, ligado ao cultivo da hortelã. Mas foi um período importante da história da região”.
Alambique para a extração do óleo da hortelã.
Migrantes
O ciclo da hortelã se estendeu aproximadamente de 1968 a 1978. Os compradores geralmente eram empresas japonesas, que adquiriam basicamente o óleo da planta, que era extraído pelos próprios produtores da região em alambiques, num processo conhecido como lambicagem. O produto era destinado, entre outros fins, às indústrias de cosméticos e farmacêutica.
A hortelã exigia bastante mão-de-obra. “Todo o processo era manual. Trabalhadores da época colocam que era uma atividade pesada, mas que era boa”, diz o historiador. Isso explica, em partes, o grande fluxo de pessoas que chegou à região. Em 1970, por exemplo, a população de Marechal Cândido Rondon (que na época ainda contava com os distritos de Mercedes, Entre Rios do Oeste, Pato Bragado e Quatro Pontes, todos emancipados no início dos anos 1990) era de mais de 43 mil habitantes. Conforme Gilson, “havia um movimento grande na cidade, muitos táxis, um comércio forte. Não tem comparação, mesmo agora, com toda a estrutura que se tem”. No caso de Mercedes, os números comprovam o crescimento populacional: em 1960, no distrito moravam 1.509 pessoas e, em 1981, o total havia saltado para 5.752 habitantes, população próxima à atual no município.
Uma das preocupações da pesquisa foi resgatar a memória daqueles que não são privilegiados na história da região, ou seja, os pioneiros que não vieram do Rio Grande do Sul ou Santa Catarina. “Muito se fala do migrante sulino como o tipo ideal para se colonizar a região. Mas, tivemos também pessoas vindas de outros lugares como Minas Gerais, Bahia, São Paulo, até mesmo do norte do Paraná. Essas pessoas, geralmente, não vieram para comprar a terra, que era o caso da maioria dos migrantes sulinos. Eles vieram em busca de trabalho. São os chamados trabalhadores itinerantes, que encontraram na nossa região as plantações de hortelã. Muitos desses migrantes trabalharam alguns anos na atividade hortelaneira e depois foram embora. Trabalhavam como arrendatários, meeiros, desenvolviam o trabalho pesado. Então, é possível perceber que não foi uma migração homogênea que veio do sul. Mas, sim, que havia pessoas vindas de várias regiões, e isso já na década de 1960”.
Geraldo Alves Gonçalves, hoje com 49 anos, é um desses trabalhadores migrantes que, paticamente por acaso, chegou em Marechal Cândido Rondon em 1974 e viu na hortelã a sua primeira oportunidade de trabalho.
Natural de Poté, Minas Gerais, Geraldo deixou o lugar em que nasceu aos 11 anos, quando mudou para a cidade de São Paulo, onde o irmão trabalhava como pedreiro. Na capital paulista vendeu picolé, entregou jornal, mas o dinheiro era pouco. Então, ainda adolescente, foi tentar a vida em Curitiba, onde não passou mais do que algumas horas até decidir vir para Marechal Cândido Rondon, acabando por se instalar em Mercedes, em 1974, época que a cultura hortelaneira estava indo muito bem.
Memórias
“Quando eu cheguei era tudo mato, que foi derrubado para o plantio da hortelã”, recorda Geraldo. Segundo ele, lidar com a cultura era um trabalho sofrido: “você tinha que derrubar o mato, queimar, fazer a muda e plantar a hortelã. Mas era um trabalho que a gente ficava mais satisfeito, porque na época trabalhava e tinha dinheiro. Hoje você trabalha e não tem. Na época, tudo que eu via eu comprava. Uma bicicleta nova, um sapato bonito que eu queria comprar eu comprava, uma roupa. Na época era muito bom, eu queria que voltasse aquele tempo que nós tinha”.
Geraldo conta que quando veio para a região, nem ao menos conhecia a hortelã. Mas, tão logo percebeu que apesar da lida dura, essa era uma atividade rentável, ele passou a trabalhar na cultura também. “Eu era pinga-pinga, parava em qualquer propriedade. Eu chegava e pedia se tinha serviço pra cortar hortelã. Aí quando tinha, eles me davam comida, me davam roupa, dormia ali mesmo e no outro dia direto de novo, até acabar a hortelã. Então quando acabava numa propriedade, ia pra outra”.
O serviço era pago por salamim (uma área de 25 m x 55 m). “Quando eu comecei a cortar hortelã, eu não sabia como fazer, cortava com enxada. Não cortava nem meio salamim por dia. Aí inventaram aquela gadanha, uma espécie de foice, daí passei a cortar um por dia, no outro dia já cortei dois e assim foi indo”.
Seu Zequinha, aquele do começo da reportagem, começou a trabalhar com a hortelã em 1971, também por acaso. Inicialmente, quando chegou em Mercedes, a idéia era cultivar milho, soja e mandioca, numa empreitada junto com o seu irmão. No início, o trabalho foi como o planejado. Em 1970, fizeram a derrubada da mata e plantaram milho, que rendeu uma boa colheita. Porém, em conversas surgiu a idéia de plantar hortelã, em área arrendada, o que causou espanto à sua esposa. “Disse ela pra mim: ‘nós vamos deixar de plantar planta pra plantar mato?’. Eu disse: “mulher, a gente faz uma experiência na vida também’”.
A atividade deu certa. Zequinha e a família cultivaram a hortelã por cerca de cinco anos. Ele lembra que a atividade dava um bom dinheiro. “Olha, rapaz, era até interessante porque, às vezes, amanhecia o dia e você tava duro igual santo de igreja. Sem dinheiro, às vezes sem comida, aí quando era pelas 10 horas, o comprador chegava e a coisa mudava, porque a gente vendia tudo à dinheiro. Era uma plantação de rendimento. Mas teve muito coitado que se saiu bem, mas não teve um grande futuro, porque achava que nunca ia acabar aquela riqueza".
Seu Zequinha: “sinto muita saudade. Isso nunca mais sai da memória da gente”
Em sua dissertação, Gilson chama a atenção para as diferenças nos modos de viver entre os migrantes vindos do sul e aqueles que chegaram de outras regiões do país. Uma, já apontada, é que os catarinenses ou gaúchos, em sua grande maioria, adquiram terras nos primeiros anos da colonização, enquanto que os outros quase sempre vinham para trabalhar nessas áreas como empregados, meeiros ou arrendatários.
Esse fato levava a uma situação até engraçada, porque os migrantes do sul, geralmente, pressupunham que os “nortistas” tinham vocação ou já sabiam lidar com a hortelã, o que estava longe da verdade. “É um conhecimento que eles adquiriram trabalhando, por uma questão de necessidade de sobrevivência. Pelos relatos dessas pessoas, elas não sabiam, nem conheciam o que era a hortelã”.
Outro estranhamento era a maneira de lidar com o dinheiro. “Eles não tinham muito o costume de economizar”, diz Gilson sobre os trabalhadores ditos nortistas, embasado em entrevistas feitas com migrantes tanto do sul como das outras regiões. Huberto Dörner, 66 anos e pequeno produtor que chegou em Mercedes em 1961 e que também chegou a trabalhar com a hortelã, mas numa pequena área, corrobora com a afirmação.
Músico que tocou em muitos bailes da época, Huberto entende que “o caboclo, os paulistas que vieram na ocasião aí, eles não sabiam economizar, deixar pra amanhã. Torravam o que tinham. Se tinham os últimos cinco pilas no bolso, não iam embora sem gastar e amanhã eles começam tudo de novo”. Em razão disso, além do fato de haver um grande número de pessoas na época da hortelã, ele afirma que na época “quem mais faturou foram os comerciantes de Mercedes”.
Seu Geraldo, o mineiro que trabalhava como peão na atividade, comenta que, no seu caso, “o dinheiro que às vezes a gente tinha ia passear, rapaz solteiro, sabe como que é, né! Não segura muito o dinheiro. Então, tudo que eu via eu comprava”.
O fim
A cultura hortelaneira exige um solo bastante rico, o que se encontrava facilmente na região. Para tanto, bastava fazer o desmatamento. Realizada essa tapa, se plantava as mudas, que estariam prontas para o primeiro corte dentro de 120 dias, em média. Assim, a planta brotava novamente e outro corte podia ser feito depois de quatro meses, o que resultava em três colheitas a cada ano. Porém, como a hortelã é uma cultura que exige muito do solo, uma área servia para a atividade por no máximo cinco anos. A partir desse período a produção começava a definhar, o que exigia a derrubada de novas áreas da mata.
Uma vez feito o corte, as plantas eram levadas para o alambique, onde se extraía o óleo. Este era o produto que as empresas compradoras estavam interessadas e pelo qual faziam o pagamento conforme o total de gramas de óleo que era entregue em cada venda.
Com o esgotamento do solo e sem mais áreas para onde expandir, ao final da década de 1970 a produção acabou se tornando inviável e foi substituída por outras atividades, entre elas, a cultura da soja, que foi intensificada. Sem terem mais onde trabalhar, uma vez que no mesmo período aconteceu a mecanização das práticas agrícolas, que reduziu drasticamente a necessidade de mão-de-obra, muitas pessoas acabaram indo embora da região. Quem ficou, teve que se adaptar à nova realidade e buscar outras alternativas de renda.
Além do colapso da economia ligada à hortelã, a cultura deixou também um enorme rastro de destruição da natureza, em um período em que já se começavam os alertas sobre a necessidade de se cuidar do meio ambiente. Conforme o historiador Gilson, na época, “a Copagril, nos seus informativos, já alertava que, junto com a produção agrícola, que necessitava de uma área cada vez maior, existia também uma preocupação com o meio ambiente”.
Atualmente, a devastação da natureza da região está muito associada ao processo de mecanização agrícola, mas antes, conforme o pesquisador, esse processo já estava em andamento. “A hortelã colaborou bastante para a devastação”, afirma o pesquisador, que revela que os próprios governos acabavam incentivando a derrubada da mata. “A partir dos relatos que eu trabalhei, foi colocado que quanto mais mato você derrubava, mais terra você estava ocupando e maior era o financiamento que podia fazer. Derrubava-se o mato até a barrancas dos rios. Queimava-se a madeira ou jogava no rio”, revela.
Daquele período, hoje restam somente as lembranças, algumas fotos ou poucos documentos espalhados por aí. Mas alguns que viveram no dia-a-dia a cultura da hortelã, como Seu Zequinha, ainda estão por aí e lembram muito bem de toda aquela história. “Foi uma época boa. Uma luta que valeu a pena. Sinto muita saudade. Ainda sonho com a lambicação da hortelã e isso nunca mais sai da memória da gente”, garante o agricultor.
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