Legado cultural da imigração
Pioneiros 27 de Março de 2016
Texto da dott. ssa. Giorgia Miazzo
Jornalista Giorgia Miazzo
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1ª PARTE
PROJETO "CANTANDO IN TALIAN" DESTACA A HERANÇA CULTURAL DOS PIONEIROS ITALIANOS
Sempre escutei com muita curiosidade os contos de meus avós, a paixão, alegria, às vezes o sofrimento em contar as histórias do passado, seus intercalares, as maneiras de dizer, os saberes de um tempo e as palavras que se herdaram da geração anterior. Um conhecimento antigo transmitido de pai para filho, um canal importante de transmissão intergeracional que nos permite crescer e nos tornar adultos. Quantas vezes passamos os dias de nossa infância perto deles ouvindo-os horas e horas, fazendo perguntas com contínuos porquês sobre o mundo, a vida e tudo o que nos rodeia.
A língua das minhas raízes a encontrei dez anos atrás, quando morava no Brasil, como professora de italiano da UFSC (Universidade de Florianópolis) e conheci uma senhora que sempre me dizia "el me talian l'è sbaliá". Eu, surpresa, a mais de 10 mil km de casa, em poucos instantes, me senti em minha terra natal.
Aquela senhora me fez descobrir um dos novos mundos da imigração italiana do final do século XIX, da qual quase não se menciona nas nossas escolas, onde estuda mais as tragédias da Primeira e Segunda Guerra Mundial, deixando de lado o fenômeno que levou para o mundo milhões de italianos e europeus em busca de um novo futuro para suas famílias e que mudou radicalmente a estrutura político-econômica eurocêntrica antecedente.
Refletindo hoje, percebo que as palavras daquela querida senhora me levaram a dedicar anos de pesquisa sobre o precioso patrimônio linguístico e cultural da imigração do norte da Itália para o Brasil. Por trás dessas palavras estão o sofrimento, o isolamento, as dificuldades de comunicação, uma identidade cultural reprimida durante a ditadura e a vergonha de falar uma língua que era considerada dos gnoranti ou dos bauchi.
Essas palavras falavam de duro trabalho, marginalização, fome, luta para dominar uma natureza áspera e dura. A senhora me fez conhecer a força de uma comunidade que se reunia para sustentar-se e se dar forçaem um novo mundo desconhecido e difícil por construir. Assim, àquela frase que ainda hoje escuto em muitos lugares do sul do Brasil , respondo com a dignidade e o respeito que merece uma língua: "el so talian no l'e sbalià parché se capimo pulito e la ze la stessa léngua che'l parla el me pupà".
A língua dos imigrantes do norte da Itália, que por convenção se costuma apelidar de talian, é uma herança enorme da qual ter orgulho, constitui um legado passado e presente de uma cultura viva e digna de ser valorizada como qualquer outra, especialmente no contexto do sul do Brasil, em que adquire uma importância pecualiar.
Resgate - Como linguista italiana e professora de línguas, senti a obrigação de dar a minha contribuição à preservação deste patrimônio ítalo-brasileiro do talian. Meu estudo se concentra em um levantamento linguístico da fala taliana em algumas regiões de imigração e a sua aplicação na didática. Realizei uma pesquisa específica entre muitas comunidades ítalo-vêneto-brasileiras para aprofundar a língua e cultura talianas, criei um trabalho científico de análise para divulgar o fenômeno da imigração do norte da Itália para o Brasil e propus um método de ensino para proteger o talian. Além disso, consultei os mais importantes estudiosos do talian, entre os quais lembro com carinho e estima frei Rovílio Costa e Honório Tonial. Minha formação de professora de línguas e a dedicação às línguas locais da imigração, além de meu conhecimento de ítalo-vêneta que morou e ainda permanece muito tempo entre os entre os imigrantes no Brasil, seriam características essenciais para uma contribuição especial do resgate do talian.
PESQUISA ACADÊMICA VALORIZA O SONHO DOS IMIGRANTES EM BUSCA DA CUCAGNA
Meu curso profissional ocorreu durante 10 anos de estudo e de viagens anuais entre a Itália e o Brasil. Com intervenções e atividade de estudo e ensino nas universidades Ca’Foscari de Veneza, UFSC em Santa Catarina, UEL no Paraná e UERJ no Rio de Janeiro, nas administrações públicas e associações culturais italianas, como Região Vêneto e Associação Veneti nel Mundo, e brasileiras, em particular nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, Espírito Santos e São Paulo.
O resultado da grande pesquisa feita durante estes anos é “Cantando in Talian”, um projeto histórico e acadêmico apresentado com entrevistas, fotografias, testemunhos e músicas na Itália e no Brasil, sobre o fenômeno da imigração do norte da Itália no Brasil e da herança cultural e social dos povos oriundos nas novas terras de estabilização.
Este estudo em 2012 foi distinguido com o prêmio Internacional Globo Tricolore, promovido pela Presidência da República Italiana e pela RAI, em 2013 ganhou o Prêmio por Melhor Trabalho Acadêmiconas Ciências Humanas instituído pela Associação Consultores Regionais do Vêneto, em 2014 foi aprsentado no programa Community - L'altra Italia em Rai Scuola e Rai World, e a partir de 2014 foi proposto em mais de 100 cidades entre Itália e o Brasil.
Inestimável - O trabalho tem como objetivo promover e dar a devida importância ao patrimônio cultural e social de um povo que desde 1875 construiu uma nova sociedade, mantendo suas tradições, usos e costumes, música e especialmente a língua, que se tornou o motivo condutor entre as fases de imigração a partir de 1880 até 1950, as novas gerações e a pátria distante. O talian é patrimônio único e inestimável que tem que ser reconhecido e preservado como símbolo de dignidade, orgulho e força de uma comunidade composta por milhões de descendentes.
A pesquisa visa valorizar o significado de emigrar quando se precisava deixar o próprio país paea catar la cucagna na cantada e sonhada "Mérica". Passaram muitas décadas e a ligação com a terra de origem ainda permanece forte, tanto que o talian é falado por quase dois milhões de ítalo-brasileiros. Em específico, depois de estudo sobre fonética e a gramática taliana, o trabalho se desenvolveu por meio de uma pesquisa feita entre 2004 e 2011 sobre a situação sócio-linguísta existente e o relativo interesse em aprender ou melhorar o talian, em colaboração direta com as universidades, as comunidades locais e as administrações dos estados do RS, SC, PR, SP, ES, MG e RJ, também mediante um levantamento e entrevistas sobre a fala e a música taliana elaborando as características sócio-linguísticas deste fenômeno.
Conferir em: http://www.correioriograndense.com.br/noticias/especial/03-03-2016/talian-e-legado-cultural-da-imigracao
2ª PARTE
A VALORIZAÇÃO DAS MEMÓRIAS
Cantando in Talian destaca a fala e a cultura tradicionais através de cinco livros
Partindo dos pressupostos vistos na página anterior, Cantando in Talian se torna um instrumento eficaz e concreto de valorização da fala e cultura tradicional, representado pela publicação de cinco volumes complementares:
1. Descobrindo o talian - Viagem só de ida para a Mèrica (em português) - A história da emigração vêneta e do norte da Itália a partir de 1870 até os dias de hoje pode ser representada pelo legado das memórias, das tradições e da música. A viagem à descoberta das comunidades oriundas permite ouvir histórias e contos de vida que evidenciam o fenômeno dos usos e dos conhecimentos vênetos também com preciosos arquivos fotográficos históricos ítalo-brasileiros e outro material iconográfico.
2. Scoprendo il talian - Viaggio di sola andata per la Mèrica (em italiano) - A história da emigração vêneta e do norte da Itália contada em italiano, destinada para a comunidade italiana que, embora pertença a ela, não conhece o fenômeno da sua migração no mundo, mas também para quem gosta de ler na língua italiana oficial.
3. Cantando in talian - Imparar el talian cola mùsica (em talian, com CD musical) - É um projeto educacional em dois níveis, concebido para ensinar o talian, através do uso da música e da apresentação de leituras sobre a tradição literária e focos culturais que contam o ambiente vêneto através da arquitetura, paisagens, gastronomia, cultura e as tradições.
A música como elo entre o berço de origem e a nova pátria
As músicas tradicionais, se, por um lado, se constituem em um fio condutor cultural entre pátria de origem e imigrante, entre pai e filho, entre passado e presente, de outro lado definem um tecido maduro e homogêneo, caracterizado por uma consciência de identidade cultural e linguagem intergeracional compartilhada. Nessa condição, o conhecimento dos conteúdos musicais ou o desejo de reapropriar-se de suas tradições pressupõe maior intencionalidade e estímulo para quem se aproxima de um percurso didático, oferecendo um recurso alternativo ao ensino tradicional.
Tal peculiaridade torna-se importante instrumento para a glotolinguística na programação de atividades também de caráter lúdico-cultural. O apoio da música para o ensino da língua dos imigrantes torna-se inovativo e inédito, visto que, a partir da escuta de dezenas de canções tradicionais e contemporâneas, propõe o uso da música como instrumento para realizar atividades didáticas.
O manual Cantando in Talian é subdividido em dez unidades didáticas, organizadas entre o nível básico e intermediário da línguataliana, nas quais utilizei diversas músicas folclóricas e modernas de cantores e grupos ítalo-vêneto-brasileiros, entre os quais Jovenal Dal Castel, Ragazzi dei Monti, Valmor Marasca, Gruppo sul Paion e Valdir Anzolin. É um livro que ensina os conteúdos fonéticos, morfossintáticos e lexicais, em paralelo com um vocabulário específico relativo aos macrotemas das profissões, da família, do turismo, da cozinha, do vestuário, do mobiliário, dos transportes e do conhecimento geral do mundo. Foi adotado o alfabeto oficial dotalian e aplicada a ortografia unificada escolhida do grupo de estudo de Rovílio Costa e ainda referência e base nas gramáticas e nos dicionários do talian.
O objetivo educativo compreende tanto o público adulto, quanto o da escola primária e média, de tal modo que esse livro se torne um instrumento de difusão de amplo uso integeracional. De fato, os textos, aliados a uma refinada apresentação gráfica, juntamente com numerosas e graciosas ilustrações, tornam-se estimulantes e convidativos também para outras faixas de idade.
O livro apresenta também as soluções, os textos e as músicas das canções, oferecendo subsídio completo, aproveitável tanto para o nível autodidático, quanto para lições no seio de um contexto escolar. Além do mais, foi dedicada especial atenção na apresentação de exercícios relativos ao uso de provérbios, modos de dizer, jogos como a mora e o baralho, receitas culinárias que reproduzem a identidade comum vêneta. Ao término de cada módulo, foram inseridas algumas leituras extraídas de textos de referência da cultura que descrevem situações coletivas e particulares da vida cotidiana do imigrante.
Finalmente, com o intento de oferecer focos culturais, foram anexados alguns escritos sobre temáticas históricas, arquitetônicas, turísticas e profissionais, em que se trata do norte da Itália e do Brasil dos imigrantes. A publicação tem por fim último satisfazer a uma necessidade e a exigência prática de material estruturado para a didática do talian, visando salvaguardar o relativo patrimônio linguístico e cultural que ameaça desaparecer por falta de instrumentos idôneos para sua conservação.
3ª PARTE
AS APRESENTAÇÕES DO CANTANDO IN TALIAN NA ITÁLIA E NO BRASIL
A difusão e a apresentação do projeto tiveram início em 2014, através de um percurso de encontros e cursos sobre a língua e cultura taliana, que envolveu televisões, jornais, rádios, escolas, associações e administrações no sul do Brasil e na Itália, especialmente no Vêneto, Trentino Alto Adige, Friuli Venezia Giulia e Lombardia.
A intenção é de fazer conhecer e crescer a consciência e a sensibilidade para este patrimônio comum e nestes anos, como este, por ocasião dos 140 anos da imigração italiana no Rio Grande do Sul, foi feito um grande roteiro no Brasil entre os meses de julho e setembro, com palestras e cursos para adultos e até crianças de escolas primárias e secundárias. Fui recebida em várias comunidades, entre as quais lembro com muito carinho, no estado de Santa Catarina: Seara, Nova Veneza, Xavantina, Chapecó, e, no Rio Grande do Sul: Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Antonio Prado, Flores da Cunha, Nova Pádua, Carlos Barbosa, Ana Rech, Muçum, Pinto Bandeira, Garibaldi, Monte Belo do Sul, Nova Bassano, Nova Prata, Nova Milano, Caravaggio, Farroupilha, Não Me Toque, Nova Roma do Sul, Nova Pádua, Três Palmeiras e Santa Cruz do Sul.
Sentimentos - Encontrei muitas pessoas que quiseram compartilhar e se confrontar sobre o tema do talian, nomes, rostos, sorrisos que ainda hoje contam o que significa ser taliani no Brasil. Houve pessoas que fizeram mais de 20 km através da roça para compartilhar o sentimento do talian, com o desejo comum de pertencer a uma comunidade viva e forte, ligada a um amor sincero pela própria família e história. Cada noite, os eventos, acompanhados por vídeos, imagens, testemunhos, poemas e músicas, estiveram cheios de vontade de compartilhar e de contar, relacionar e juntar dois países muito distantes através da mesma língua e cultura.
Em particular, os cursos de língua e cultura foram realizados com a duração de uma semana e envolveram as comunidades com boa participação e interesse de adultos, mas também de jovens, ansiosos de conhecer melhor a história da própria terra. Os sorrisos, os risos divertidos, os comentários e a alegria sincera acompanharam também algumas lágrimas de emoção, olhos transparentes e profundos de quem levava aos cursos não somente seu cotidiano, mas no coração também seus pais ou avós.
Legado - Uma sensação peculiar que ninguém queria comentar, mas que se percebia nos olhos e na paixão em que se identificavam. Os encontros foram apoiados por vídeos, imagens, focos culturais, testemunhas diretas e poemas, enquanto as músicas, selecionadas entre mais de 400 produções ítalo-brasileiras populares e atuais, foram utilizadas para o ensino do talian, através de uma abordagem lúdica e enfatizando o vocabulário, as expressões típicas e os provérbios, que fazem de uma língua um veículo de comunicação único e especial.
Cantando in Talian torna-se, então, uma vontade sincera e honesta de dar a conhecer e redescobrir um patrimônio único, reconhecido desde novembro de 2014 como primeira cultura migratória do Brasil. A satisfação maior é de pensar de ter contribuído a enfrentar humanamente e cientificamente esse legado incrível e precioso.
Sacral reverência por cada palavra transmitida pelo novo idioma, o talian
Existem muitos livros que falam do passado, das origens, das travessias, da chegada, do duro trabalho e sofrimento no novo mundo, mas creio que tem vital importância escrever de um taliando presente, feito para os jovens taliani das gerações futuras e para os corações das passadas.
Nas escolas envergonhavam quem falava em talian, porque era considerada a língua dos estúpidos, assim os meninos, que o falavam melhor do que o português, gradualmente deixavam de falar otalian, que conheciam bem. Essa fase representa um estigma nas mentes e nos corações dos descendentes que ainda hoje tendem a sentir vergonha nas inflexões em talian em seu português. Antes de ensinar o talian é fundamental transmitir e dar de volta o sentido de orgulho que foi tirado de forma ruim e mostrar que é a língua de suas raízes e tem que ser honrada justamente porque toca o coração.
É importante ampliar o conhecimento do fenômeno migratório, que não deve ser reduzido a uma simples visão folclórica parcial e fechada. O talian não deve tornar-se somente a polenta e o salame, mas a força de uma comunidade que é preservada há quase um século e meio.
É essencial então criar uma nova consciência de que o talian não é um idioma errado e não há só um jeito de falá-lo. Devemos ter respeito e sacral reverência para cada palavra que até agora foi transmitida e, neste sentido, o estudo do talian deve ser cuidadoso e sensível, baseado em uma abordagem científico-pedagógico-didática, que exige pesquisa, preparação e humildade. Cada área de colonização tem prevalências lexicais e de influência ditadas do lugar e época de origem dos imigrantes e muitas vezes do contato com outras comunidades locais maiores do que a própria.
Espelho - O talian, então, se torna o espelho linguístico destas pessoas, destes vales, destas paisagens repletas de morros e campos, através de uma seleção natural dos termos que foram modificados, evoluídos e misturados graças ao contato, à comparação e à evolução da cultura local. É uma língua certa e cada palavra é uma voz, uma saudação de uma terra distante, do bairro e dos municípios deixados na Itália, e hoje, depois de 140 anos, fico emocionada de ouvir o calor e a força da palavra, como por exemploamarelo, que escutei nas variações de gialo, gial, gialdo, zalo, zaldo,zal, dalo, dal, daldo...
Qual é o talian certo? Todas as variantes estão corretas e têm o direito e o dever de serem transmitidas. Ensinar esta língua significa retomar as palavras que com o português estão sendo perdidas, recuperar os termos dos avós, do passado, das origens, que gradualmente estão se fundindo com as línguas principais.
Neste sentido, um grande risco é a contaminação com o italiano oficial que muitas vezes leva à fusão e à confusão de termos que cada vez mais são italianizados, como as preposições ntel / ntela e co/ cola, que se tornam ne / nela e con / con la, ou a inserção errada de duplas que não estão presentes nem em italiano como em bevenutti, uma dificuldade que ocorre também na Itália quando se passa dos dialetos à língua oficial.
Identidade - Este processo, nesta fase de reavaliação linguística dotalian, deve ser bem controlado por estudiosos que se aproximam ou querem propor um estudo da língua, evitando o empobrecimento progressivo e a deformação linguística.
Por fim, dada a difusão e a utilização do talian, também no dia a dia, é preciso dar novamente a devida atenção a este idioma, que é a língua da imigração italiana no Brasil e ao mesmo tempo é necessário poder colocá-lo, tanto na didática que na cultura, em paralelo ao italiano oficial.
O talian não é a língua dos bauchi e dos gnoranti, mas é uma voz clara e marcada de um povo com uma identidade forte e definida, que deve ser preservada e defendida com respeito às novas influências culturais da imprensa, da comunicação social e de uma nação que evolui muito rapidamente. É preciso
manter esta ligação linguística e cultural entre as gerações que neste momento estão em crise em relação às novas ideias de sociedade e de globalização.
Conferir em: http://www.correioriograndense.com.br/noticias/especial/03-03-2016/cantando-in-talian-na-italia-e-no-brasil
4ª PARTE
UMA PONTE ENTRE DOIS PAÍSES
O talian, falado a 10 mil quilômetros da Itália, surpreende, une e reconforta
Se penso na minha Itália vejo, de outra forma, um país de imigrantes, regiões que se despovoaram diversas vezes ao longo dos anos. Uma nação que sofreu a fome, as guerras, a partida dos filhos para combater, a morte dos que nunca voltaram e um pós-guerra muito difícil. Vejo um território no qual cada família lê ansiosamente as notícias dos parentes distantes na Argentina, Brasil, EUA, Austrália... muitos migrantes saíram 140 anos atrás, outros antes e durante as duas guerras mundiais, outros no pós-guerra... sobre muitos não houve mais notícias...
A Itália ficou aguardando as palavras distantes, de imagens, contos e histórias que ressoaram e vinham contadas e mimadas, repetidas na cozinha com o fogão ou nos filós tão semelhantes àqueles do além-mar. Esperavam com avidez as palavras e as cartas que enchiam o coração, acalmavam e aquietavam o espírito. Um como vai você?,uma saudação a todos, um abraço... feito de poucas linhas e grande melancolia dos queridos e de suas famílias. Ainda hoje vivenciando com as comunidades sinto forte essa tensão, uma questão não resolvida e uma atmosfera em equilíbrio entre o passado e o futuro.
O projeto Cantando in Talian é uma ponte entre a Itália e o Brasil, que quer reconectar essas histórias de pessoas, parentes e famílias que viveram em paralelo destinos diferentes e que se separaram com o afastamento dos navios para além do horizonte. Falar talian hoje, a mais de 10 mil km de distância, torna-se uma surpresa, uma doce descoberta que nos une e reconforta, que alivia nossas almas em saber que esses pais, filhos, tios e netos, partidos com a esperança de encontrar a cuccagna, se encontram nos olhos profundos, nos sorrisos e na fisionomia de quem hoje mora nesses municípios e cidades tão distantes, nessas maravilhosas localidades do interior, em que observam passos altivos de pessoas com bigodes, chapéus de palha na cabeça e características familiares.
Da diversidade na Itália à união dos povos e das comunidades no sul do Brasil
Se na pátria italiana o cidadão vicentino, bellunese, veronese,padovano, trevigiano... era sinônimo de diversidade e de culturas diferentes, lá, no sul do Brasil, a exigência de enfrentar as hostilidades e de compartilhar os problemas da vida cotidiana deu origem à união dos povos e das comunidades. Entrando em um bar é fácil perceber muitos gritos nos jogos das cartas, todos ao redor de uma mesa, quem joga e quem olha surpreendido, quase como se os anos que se veem nos cabelos e nas rugas nunca passaram. São sorrisos genuínos e autênticos que me fazem sentir na Itália. Uma terra que hoje chamam Brasil, mas que, nos costumes e tradições, retorna às pequenas localidades, povoados e aldeias do norte da Itália.
Partilha - Observo as expressões do rosto, os movimentos, os intercalares e em um instante me parece perceber um Vêneto longe que não existe mais e que nós italianos, hoje, afortunados viajantes, viemos aqui redescobrir e conhecer. Passeando pelas ruas, um pouco mais na frente, encontro a dona de uma loja que, à indiferença de uma saudação em português, segue-se a estupefação e a curiosidade quando começamos a falar em talian. Surge um desejo único de contato recíproco de saber e descobrir o que a história separou, a vontade de compartilhar e trocar informações, histórias e contos assim como faziam na Itália e como fazem agora no Brasil nossos avós nos filós.
Ainda mais profundo e íntimo torna-se o relacionamento com os amigos que me contam sobre a história de suas famílias, de como essa terra perto da montanha foi difícil de cultivar, de quanto aquela estrada construída com a força dos picões e dos braços foi importante para melhorar o acesso à cidade. Enquanto as pessoas falam sobre si mesmas e de suas dores e compartilham comigo suas fraquezas e melancolias, me considero uma privilegiada em conhecer e poder compartilhar estes momentos que guardarei para toda vida no coração.
Estes amigos, com os olhos brilhantes e sem conseguir terminar o discurso, me falam de seus pais, de seus avós, do sofrimento e da pobreza dos primeiros anos, e com orgulho me mostram as fotos dos filhos, patrimônio único e inestimável, que hoje são advogados, médicos, professores, estudantes. Uma satisfação imensa que se lê nos olhos e justifica todo aquele trabalho sob o sol quente do verão e a geada do inverno. Representa uma gratificação que olha para além da montanha dessas pedras da roça e um orgulho por ter dado uma opção de vida a seus filhos e à própria família.
Significado da vida - Antes de tudo isso torna-se ainda útil aquela sabedoria ancestral que nos permitiu manter este precioso mundo da imigração, como os ditados, os testemunhos e os costumes dos antepassados. E aquelas palavras eram as únicas certezas, a sabedoria do pai que dava segurança em um mundo hostil. Hoje, entrando na roça, quase incrédula, ouço um silêncio ensurdecedor ao qual em nossas cidades já não estamos acostumados, que me fala e que me deixa o tempo e o espaço para sentir o significado da vida.
Aprendamos de novo a escutar estes sons que se tornam cada vez mais nítidos e claros, a sentir novamente um contato com a terra que perdemos. A roça lentamente fala para você, sossega, mostra o Toni, o Luigi, a Maria que subiram a montanha, que araram a terra, que cortaram aquela árvore de dois metros de diâmetro, que abriram uma nova estrada e que trabalharam para a chegada da rede elétrica... São pequenas grandes coisas de uma vida dura que permaneceu estática na sua cadência cotidiana por décadas até os dias de hoje. Por isso, quando entro em uma escola e vejo o Brasil do futuro, penso que se torna essencial contar a história destas terras, destas pessoas que transformaram uma parte do mundo, tornando-o mais doce e menos áspero. E aqueles olhos jovens e curiosos descobrirão uma história que os avós parecem não contar mais, uma vida que parece cada vez mais distante quando, pelo contrário, é a causa mais profunda do sucesso desta parte do Brasil.
Cantando in Talian é então um convite de olhar para o horizonte e para o futuro de uma cultura e língua que devem construir o próprio amanhã criando seus filhos, mas nunca esquecendo suas raízes, história e identidade.
E em dez anos gostaria de ouvir as palavras de um meu caro amigo que dizia:
“E se te scolti el talian, la gente i lo ricognosse da distante, suito quando el verde la boca e el dise la prima parola. I ne dise: Questo l’è on talian del Rio Grande do Sul, e se te schersi, i te dise anca dela sità che te si nassesto, e se i la sbàlia, ze de pochi chilòmetri...”
...para não errar de muito aquela estrada e encontrar-nos novamente pelo mesmo caminho e direção.
O roteiro continua na Itália até ao mês de maio de 2016, para depois retornar ao Brasil com cursos, filós e eventos de promoção e divulgação. E como me dizia o grande capuchinho Rovílio Costa: “Sempre avanti che la procession ze longa!”.
Quem deseja organizar ou participar de um encontro conosco pode entrar em contato diretamente através do e-mail:giorgiamiazzo@gmail.com. Mais informações, livros, palestras e cursos: e-mail: giorgiamiazzo@gmail.com; site:www.giorgiamiazzo.com; Whatsapp: +393936511212; Facebook: Giorgia Miazzo Cavinato. Pedido dos livros em Caxias do Sul, com Giovani Bettiol (54) 8129.0757, e-mail giovani@systematiza.com.br.
Conferir em: http://www.correioriograndense.com.br/noticias/especial/03-03-2016/talian-ponte-entre-dois-paises
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