Pinhal: comunidade resgata fato histórico
Pioneiros 31 de Outubro de 2016
Episódio, ocorrido há 75 anos no interior caxiense, envolveu 36 famílias de colonos inocentes ...
Renato Mazzochini, Francisco Cemin e Arlindo Dellagrave,d a esquerda à direita.
Foto: Linore Cemin
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Alguns fatos entram para a história porque, no seu devido tempo, são feitos registros que os perpetuam. Outros, porque deixam marcas inapagáveis; outros, porque a tradição oral os mantém vivos. Muitos, porém, se perdem, irremediavelmente. Nesse último, quase entra um episódio ocorrido há 75 anos, no Pinhal, uma região do interior de Caxias do Sul de encostas cobertas por incontáveis vinhedos.
Não há nenhum registro que confirme o fato ocorrido no início da 2ª Guerra Mundial, mas conforme relatos de antigos moradores da região, durante um certo período, as famílias do local foram perseguidas pelas autoridades, presas e humilhadas inocentemente.
O motivo, segundo pessoas que presenciaram os fatos, seria o ódio que o “subprefeito” (intendente) de Nova Palmira, Darci Coelho, e policiais por ele comandados, tinham dos colonos italianos. A origem desse episódio foi o aparecimento da bandeira do Brasil, que estava na escola, situada ao lado da atual capela de Santo Antônio, toda retalhada, o mapa do Brasil rasgado e a placa da instituição arrancada, tudo jogado a uns 100 metros do local.
De imediato, a culpa recaiu sobre as famílias da região. Na época, Nova Palmira pertencia a São Sebastião do Caí. Reinato Ernesto Mazzochini, 93 anos, suspeita que o crime foi forjado para incriminar os colonos. A professora da escola, Guilhermina Guerra Mazzochini, foi transferida para Morro Gaúcho, mas como estava grávida, não aceitou a mudança.
Rabo de tatu: Reinato, conhecido por Reno, conta que os policiais iniciaram investigações e logo começaram a levar os colonos (geralmente marido e mulher), em grupos, a Nova Palmira e a São Sebastião, onde ficavam presos, batiam neles com “rabos de tatu” ou borrachas e eram humilhados ao ponto de terem que desfilar pelas ruas para mostrar que estavam sendo castigados por “desrespeitar” a pátria que os acolheu.
“Muitos iam a São Sebastião do Caí, apanhavam e voltavam para casa”, conta Reno. “A professora Guilhermina foi presa num quarto tão pequeno que não tinha como deitar. Como estava grávida, o bebê nasceu com problemas. Não falava e não caminhava e morreu ainda criança”, recorda Rosa Casagrande Sgarabotto, 90 anos.
As 36 famílias que na época moravam no Pinhal foram presas ou sofreram perseguições e humilhações. Dulce Dallegrave Rezzadori, 96 anos, lembra que os policiais amedrontavam e ameaçavam também as crianças. “Como os alunos ficaram sem professora, Maria Bonatto, uma moça vizinha da instituição, ia até a escola cuidar das crianças. Um dia, chegaram os policiais e mandaram todas saírem e disseram que iam levá-los a pé, até Nova Palmira, deixando todo mundo apavorado. Porém, andaram uns 300 metros e mandaram as crianças de volta".
Solidariedade: Lodovico e Dosolina Onzi Mazzochini foram levados a São Sebastião. Em casa, ficaram os quatro filhos pequenos. A avó, Anunziata Lazzaretti, que também é avó de Arlindo Dallegrave, morava em Loreto. Deixou sua casa e foi cuidar dos netos no Cerro da Glória. Um dia chegaram os policiais. Queriam que ela (e as crianças) declarasse que a filha e o genro eram os culpados pelo episódio da bandeira. Do contrário, também seria presa e torturada.
Num acesso de raiva, a avó, que estava tirando leite, pegou um foice e avançou contra as autoridades dizendo que tinha certeza que eles eram inocentes, pois estavam na sua casa, em Loreto, na noite do ocorrido. Para não serem agredidos, os policiais se puseram em fuga.
Francisco Cemin, 91 anos, lembra que os policiais fizeram da casa de seu pai, Angelo, uma espécie de QG (quartel general). Por isso a família não foi tão perseguida. “Mas nós tremíamos de medo quando os policiais apareciam. Recordo que muitas famílias fugiam para o mato ou se escondiam no meio dos canaviais para não serem presas”.
Alguns fatos ocorridos naquele episódio são, hoje, até motivo de riso, mais que de raiva ou revolta. Reno conta que quando Teodoro Dallegrave foi preso, antes de sair de casa colocou sete camisas e um blusão por cima. “Era para amortecer as pancadas da borracha nas costas. Um amigo que havia servido com ele disse-lhe: mas como você engordou depois do tiro de guerra!”.
Preso não: Os últimos que foram presos foram Bortolo Mazzochini e Giovani Dallegrave, ambos imigrantes, Bernardo Dallegrave e Daniel Kist. Levaram-nos, mas não fizeram nada com eles. Quando perguntavam ao Bortolo se tinha sido preso, invariavelmente ele respondia: “Não fui para a prisão, mas não podia sair do lugar onde estava”.
As perseguições duraram uns 40 a 50 dias e só terminaram porque o capuchinho frei Paulino de Caxias (Achiles Bernardi, autor do Nanetto Pipetta) ao visitar a comunidade para rezar missa, soube do ocorrido e, retornando a Caxias, foi ao quartel e denunciou o fato ao coronel, salientando que nas casas dos presos ficavam muitas crianças sozinhas e que era desumano o que estavam fazendo com aqueles bons colonos.
O assunto também chegou ao bispo, dom José Baréa que interveio, pondo fim àquela insana perseguição. “Nunca se descobriu quem destruiu a bandeira, mas suspeita-se que o Darci e alguns capangas estavam por trás do episódio, para poder incriminar os colonos”, conclui Reno. Ninguém sabe se o intendente Darci foi julgado ou condenado. Provavelmente foi transferido ou demitido. De concreto mesmo, apenas as perseguições, prisões e humilhações daqueles simples colonos.
Presos por falarem dialeto italiano
Lucinda Mazzochini é filha de Lodovico Mazzochini, um dos chefes de família do Pinhal, que junto com a esposa Dosolina, foi preso e levado a São Sebastião do Caí. Em entrevista a Arlindo Dallegrave, Lucinda relata que o pai ficou mais de um mês na prisão e a mãe uma semana.
Na ocasião, ela tinha 5 anos, mas o fato ficou marcado em sua memória até hoje. Segundo ela, tudo começou numa noite em que estavam fazendo um churrasco, pois uma vaca morrera acidentalmente. Além da família, estavam reunidos amigos e vizinhos, quando chegaram os policiais e levaram todos presos por estarem falando o dialeto.
No dia seguinte, conforme Lucinda, “apareceu a bandeira destruída e a suspeita caiu sobre a família Mazzochini, pois a professora da escola era a tia Guilhermina, casada com Ernesto Mazzochini. Em nossa casa, ficamos em quatro crianças, a mais velha, a Pina, com 8 anos. Meu pai foi torturado, teve os dedos quebrados para que confessasse que foi ele ou que denunciasse quem foi. O tio Melino foi colocado no paredão de fuzilamento e todos, invariavelmente, apanhavam com rabo de tatu”.
Caso da bandeira
A reportagem sobre o caso da bandeira no Pinhal tem a participação decisiva do agricultor, pesquisador e escritor Arlindo Dallegrave, de Loreto, comunidade próxima ao local onde ocorreram os fatos, que relatou parte da história na coluna Vita, Stòrie e Fròtole, edições de 29 de junho e 6 de julho deste ano. Os textos repercutiram entre os leitores e chamaram a atenção de uma pessoa que vivenciou essa história – Rosa Casagrande Sgarabotto, hoje residente em Caxias do Sul. Surpresa com a publicação, ela ligou para o Correio Riograndense elogiou o articulista, mas afirmou que aquele episódio tinha muito mais desdobramentos.
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Nota do pesquisador do projeto "Memória Rondonense".
Os maus-tratos perpetrados por autoridades brasileiras, principalmente policiais, como narrados acima, foram comuns com a entrada no Brasil na Segunda Guerra Mundial: " ... foi intensificada a repressão às nacionalidades ligadas às Potências do Eixo: alemães, italianos e japoneses. Foram anunciadas restrições às liberdades individuais: necessidade de autorização para viajar dentro do país; apreensão de livros, revistas, jornais e documentos, com destruição de parte da memória histórica da imigração; e eventual prisão daqueles que não falassem português" <https://pt.wikipedia.org/wiki/Campanha_de_nacionaliza%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em 30.11.2016.
Muitos pioneiros rondonenses e seus pais viveram situações semelhantes naquele período do conflito, sofrendo agressões físicas de policiais, vigiados e presos por não saberem falar em português ou ter em casa literatura alemã ou italiana.
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